Nem sempre de mãos dadas #5
Crónica anterior da série De mãos dadas - No Renascimento, ainda de mãos dadas #4
*
Até agora, exploramos como é que a arte e a religião andaram, durante séculos, de mãos dadas. Contudo, nem sempre isso aconteceu. De facto, quase todas as grandes religiões do mundo passaram por uma fase anicónica - que, no fundo, consistiu numa proibição de representação do Divino. Pretendia-se, com isto, evitar o pecado da idolatria.
A fase final do Renascimento ficou marcada pela Reforma Protestante, que surgiu num período de muita crítica à Igreja Católica. A população estava insatisfeita com a corrupção e com o poder excessivo que consideravam que o Papa detinha. A Igreja controlava o acesso às escrituras que, por estarem escritas em latim, eram inacessíveis para quase toda a gente. Como consequência desta revolta, a Europa dividiu-se entre Católicos e Protestantes, originando-se diversos conflitos religiosos - como a Guerra dos Trinta Anos.
A arte neste período passou por mudanças significativas que, naturalmente, refletiam as tensões religiosas e culturais da época. Algumas obras religiosas foram vandalizadas e destruídas, com o argumento de que essas imagens sacras podiam ser vistas como formas de idolatria. Na imagem abaixo, pode-se ver um altar cujas cabeças das figuras foram removidas, como consequência deste movimento.
Altar da Catedral de St. Martin, Bratislava
Fonte da imagem: www.rauantiques.com
Nos territórios com maior presença da Reforma Protestante, a arte transformou-se. Como se criticava o uso excessivo de imagens religiosas, as igrejas protestantes foram construídas com uma maior simplicidade, com menos ornamentos e imagens e um ambiente mais austero e funcional.
Como resposta a este movimento, surge, por parte dos Católicos, a Contrarreforma que reafirma o uso de imagens religiosas, passando mesmo a utilizá-las como propaganda religiosa. A construção de Igrejas Católicas nesta época foi projetada para impressionar os fiéis com a sua grandeza. A Basílica de São Pedro foi concluída durante esse período e é um exemplo claro desta procura pela monumentalidade e beleza como maneira de fortalecer a fé.
Interior da Basília de São Pedro, Vaticano
Fonte da imagem: Pinterest
É neste contexto de Contrarreforma que surge uma nova corrente artística: o Barroco. A nível arquitetónico, é importante dar especial destaque para as igrejas e palácios. Os seus arquitetos entendiam que o edifício devia ser uma "grande escultura, única e indivisível"*. Na Europa, é de destacar o Palácio de Versalhes, em França, como um exemplo paradigmático deste estilo impactante. A nível nacional, podemos mencionar o Palácio de Mafra, que reflete o poder da monarquia absoluta da época e os ideais barrocos de imponência e dramatismo.
Palácio Nacional de Mafra
Fonte da imagem: www.cm-mafra.pt/
A pintura assumiu uma maior diversidade de géneros e dimensões, para ser possível a sua inserção nos espaços arquitetónicos. Para acentuar a intensidade emocional tão valorizada pelo Barroco, recorria-se ao contraste entre luz e sombra e a um jogo de movimento para criar uma sensação de dinamismo.
Salomé com a cabeça de São João Batista, de Caravaggio
em exposição na National Gallery, Londres
Fonte da imagem: www.nationalgallery.org.uk
Este percurso e dinamismo entre a Reforma e a Contrarreforma comprova como a religião moldou, de forma decisiva, a evolução da arte, dando-lhe novas funções e significados.
Nem sempre estas duas dimensões deram as mãos, mas a arte nunca parou de ser um reflexo vivo das transformações culturais e espirituais da sociedade.
Na próxima crónica, vamos perceber que este "largar de mãos" não foi um fenómeno isolado no Cristianismo. O foco vai parar de ser esta religião para podermos explorar outras que, de certo modo, também rejeitaram a representação visual do sagrado.
M
Bibliografia consultada:
https://www.infopedia.pt/artigos/$reforma-protestante?intlink=true