Consílio dos Deuses
A viagem dos Portugueses à Índia, narrada na voz de Camões, começa já no largo oceano. Esta técnica de literatura - in media res - é um traço característico das grandes epopeias, que Camões pretendeu (com sucesso, diriam muitos) replicar.
Depois de uma só estrofe, o cenário corta para um plano diferente: o plano mitológico, muito presente e relevante na obra Os Lusíadas.
O poeta optou por introduzir este plano com um primeiro evento que deixa, desde o início, bem marcado o papel dos Deuses: é a eles que cabe todas as decisões sobre as cousas futuras do Oriente.
A imagem que nos é transmitida é clara: todos os Deuses estão reunidos, em Consílio para decidir o futuro do povo português. Encontram-se organizados por antiguidade e importância, para ouvir Júpiter - o Padre sublime e dino.
No seu discurso, o Deus Pai caracteriza os portugueses como gente de grande valor, apresenta os feitos passados desse povo, a ousadia do presente e fala muito do Fado - o futuro -que já determinou o que aí vem.
Esta sua intervenção suscita diferentes reações do lado do auditório: uns opõe-se à atitude favorável de Júpiter, outros concordam e vêm em defesa dos portugueses.
Sempre gostei muito desta específica passagem da obra e outro dia, por mero acaso, estas estrofes vieram-me à cabeça e pus-me a pensar sobre como podíamos olhar para isto de uma perspetiva diferente.
O politeísmo já não é a crença predominante e agora, quando muito, o concílio tem assento unilateral - qualquer seja o nome que dermos a esse Deus Destino.
Mas assumindo que temos (pelo menos uma percentagem de) livre-arbítrio, que Deuses temos agora que se reúnem em concílio sobre o nosso Fado? Quem é que aparece a nosso favor e quem é que vai contra o que decidimos?
O deus passado junta-se à reunião para remoer os erros cometidos ou traz uma perspetiva inovadora sobre o que passou? O entusiasmo, a antecipação boa, e a possibilidade das infinitas possibilidades de caminho são apresentadas pelo deus futuro? Ou será que este chega com ansiedade e medo do que (ainda) é desconhecido?
O deus auto-estima se calhar manda abaixo todas as ambições e planos semi-feitos - ou será que incentiva à esperança e confiança?
Os eventos fortuitos e as coincidências que inevitavelmente vão acontecendo são apresentados pelo deus sorte, e o deus azar vem só para lamentar cada percalço do caminho.
E o deus sabedoria o que faz? Será que nos recorda de lições apreendidas e nos dá conselhos valiosos, ou deixa que aprendamos - de novo - com os mesmos erros?
Tal como os portugueses ultrapassaram mares nunca antes navegados, com a presença (e interferência) constante dos Deuses, também nós atravessamos a vida ainda não vivida sempre com a presença de alguns Deuses que nos fazem companhia - mas que (quero acreditar) podemos decidir quanto é que influenciam o caminho que traçamos.
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